O Missionário
1. Oferece e recebe dons
"De graça recebeste, de graça dai."
(Mt 10,8)
O missionário é sempre visto como alguém que oferece um "presente": o dom que recebeu de Deus e que quer oferecer aos outros. Há uma força que empurra o evangelizador a comunicar essa dádiva, é um poder inerente ao mesmo dom que deve ser transmitido e nunca guardado. A felicidade de ter recebido o dom de Deus é tão grande que impulsiona o missionário a querer partilhar essa alegria.
A impetuosidade da comunicação, todavia, torna, muitas vezes, o dom inútil e sem sentido. Antes de tudo, o dom está num invólucro que não é nada atraente: é uma palavra dita a partir da cultura do missionário, que é incompreensível ao receptor. O presente pode ser bom, mas a roupagem não convida a recebê-lo. É um invólucro cinzento, quando seria melhor que fosse todo colorido. É um presente mal amarrado. Às vezes, em vez de ser levado com ternura, é jogado como lixo no mundo dos outros. O dever de entregar o dom não implica que este seja oferecido como algo incompreensível e mal apresentado. Até pode chegar a ser uma ameaça à identidade do outro quando, por exemplo, é imposto e forçado.
Além disso, exatamente por ser um dom, pode ser rejeitado ou não aceito. Ninguém pode aceitar um dom que não é esperado ou que não se apresente como tal.
O oferecimento do dom está inserido num sistema de trocas, em que há uma necessidade de oferecer, aceitar e retribuir. É um sistema que está na raiz e na visão do mundo de muitos povos. É um sistema que define o princípio da relação com os outros. Quando se fala em "sistema", entende-se uma estrutura que está na raiz do processo cultural e da construção da identidade. Junto com a dádiva há toda uma força inerente a ela, quase uma obrigação de ser oferecida, mas também aceita e retribuída. Isto vale também para o missionário. O dom que carrega consigo deve ser trocado por outro dom que é oferecido pelos diferentes povos e culturas. O Espírito de Deus já colocou as sementes que enriquecem a experiência da oferenda do missionário. Ele mesmo é obrigado a receber o dom do outro que é dádiva e força vital para a alteridade.
O missionário não é sempre aquele que é obrigado a oferecer, ele também deve receber o dom e permitir ao outro de retribuir. A mensagem evangélica, neste sistema de trocas, é oferenda que vem, antes de tudo, de Deus, oferecida na gratuidade e que, no entanto, exige a colaboração e a liberdade da aceitação e da retribuição. O Dom maior que nos foi dado é o próprio Filho de Deus, que não é propriedade exclusiva do missionário, mas que já está presente como Palavra eterna, no seio dos povos e culturas.
2. E alguém que se sente vulnerável
Uma pessoa é vulnerável quando se percebe limitada e não auto-suficiente. A experiência de que não somos os donos de nossa vida, a percepção de que todos temos que morrer e a experiência do sofrimento e da incapacidade de vencê-la, nos tornam pessoas extremamente vulneráveis. Estamos quase paralisados, diante dos grandes problemas humanos aos quais não sabemos dar uma resposta. Em vez de afirmar-se o poder da força, é a situação da fraqueza e da limitação que nos acompanha sempre. A mensagem do Evangelho atua como força também na fraqueza da limitação do missionário.
A raiz da vulnerabilidade do missionário é a mesma cruz de Jesus, sinal de fraqueza e de derrota. O paradoxo cristão é exatamente o fato de que Jesus Cristo não nos salva necessariamente do sofrimento, mas no sofrimento e através dele. O nosso Deus não quis salvar-nos através de uma ação poderosa, intervindo na realidade e eliminando a fraqueza humana. Ele nos salva, participando intensamente do nosso real sofrimento e fazendo sua morada no nosso meio. É somente no processo de fazer-se fraqueza e carregando sobre si nossas limitações, exceto o pecado, que ele pode redimir nossa humanidade. É o paradoxo da cruz como vulnerabilidade extrema e como única realidade capaz de trazer a redenção. Sem essa vulnerabilidade não há salvação, sem essa identificação completa não há redenção. Jesus fez-se vulnerável e fraco, assumindo sobre si a miséria humana até as últimas conseqüências.
Também o apóstolo São Paulo, um grande missionário, confiou, no começo de sua atividade, em sua capacidade de argumentação para convencer os outros a serem cristãos. Em Atenas, no areópago, citou os filósofos e as tradições gregas para interessar seu auditório. Na conclusão de seu discurso, quase todos tinham se afastado, dizendo que iriam escutá-lo uma outra vez (Atos, 17,16-34). Decepcionado com o resultado, são Paulo se transferiu para a cidade de Corinto e, ali, fez uma revisão do seu caminho missionário. Como conseqüência, adotou uma outra postura que procurasse fundamentar sua pregação mais na proximidade de Deus, na semente da Palavra e na fraqueza da cruz (1 Cor. 2,1-5), do que em sua argumentação humana e em seu prestígio. Somente confiando na vulnerabilidade da cruz é que foi possível, para são Paulo, centrar mais sua vida na iniciativa de Deus.
Para o missionário, a experiência da própria fraqueza e da própria limitação é a porta de entrada para confiar na misericórdia de Deus e para ser misericordioso com os outros. Somente quem passou através de um intenso sofrimento e fracasso, descobrindo a bondade e a ternura de Deus que salva, pode aproximar-se dos outros com um coração terno e bondoso. Somente quem se percebe vulnerável e limitado pode aproximar-se misericordiosamente dos outros e centrar sua vida no protagonismo de Deus... Desta maneira, é o próprio Deus que toma a iniciativa e leva a termo a tarefa missionária. É o próprio Deus que salva através de sua cruz e ressurreição.
3. Como peregrino
Toda a história do povo de Israel é marcada pelo ato de caminhar: Abraão deve deixar sua própria terra; o povo escravo no Egito caminha por quarenta anos através do deserto; o próprio Yahweh é percebido como uma presença íntima e móvel. Mais tarde, as celebrações rituais retomam o tema do êxodo transformando-o em peregrinação.
No Novo Testamento, Jesus é o peregrino que não somente participa das peregrinações ao templo, mas que faz de toda sua vida uma longa peregrinação para Jerusalém, onde será preso e crucificado. Aos discípulos é pedido que percorram o mesmo caminho até o sofrimento e a morte. A experiência da morte e da ressurreição de Jesus converterá os peregrinos galileus amedrontados (Mc 14,27) em verdadeiros missionários que vão para toda parte (Mc 16,20). E é através do seguimento de Jesus que os missionários vão se fazendo discípulos do mestre.
Ser um peregrino é desinstalar-se continuamente; é fazer da vida um contínuo deslocar-se de um lugar para o outro, solidarizando-se com os desenraizados e migrantes; é tornar-se um companheiro na busca de uma morada. Mas, ainda mais, o missionário aponta para uma outra morada "porque não temos aqui cidade permanente, mas estamos à procura da cidade que está para vir" (Heb 13, 14).
O tema do enraizamento e do desenraizamento e, ao mesmo tempo, a vida presente e aquela que deve vir representam uma tensão que gera a missão. O caminho missionário acontece propriamente nessa tensão constante entre o presente e o futuro.
A espiritualidade do missionário é caracterizada por uma peregrinação em busca de uma morada definitiva. É um deslocar-se constantemente para buscar o definitivo, superando o provisório, o efêmero, o limitado e o temporário. A história da missão e dos missionários representa uma epopéia de andanças e de movimento de pés que se deslocam entre trilhas e veredas, em florestas, em morros enlameados e sobre asfaltos esburacados. É um caminho de encontros com culturas e religiões, as mais diversas possíveis, apontando para além dos horizontes. "Ide por todo o mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura." (Mc 16,15). Representa sempre uma busca e traduz-se em encontros: o encontro de Deus e o encontro dos irmãos.
O peregrino não leva nada consigo, somente o essencial. Uma sacola, uma roupa e um bastão são o suficiente. Há peregrinos espalhados no mundo todo que dependem do apoio e da bondade das pessoas. Há peregrinos urbanos que, nas grandes megalópoles, se solidarizam com os despossuídos e põem suas energias a serviço da vida. É preciso andar sem parar nunca, deslocar-se à procura do absoluto e na realização do projeto de Deus.
4. É um estrangeiro
"Era estrangeiro e me receberam". (Mt 25, 35)
O hóspede pode ser também um estrangeiro, de outro povo e de outra cultura ou de outro país. O missionário é sempre estrangeiro. Não consegue falar a língua com o mesmo sotaque ou usando as mesmas expressões. Nunca se sentirá completamente em sua própria casa. Além disso, é quase impossível situar-se completamente numa outra cultura. Depois de um tempo, a realidade de ser estrangeiro é de tal maneira permanente que ele se torna estrangeiro também em sua própria cultura. Quando volta para a terra de origem, o missionário sente-se estrangeiro também em sua própria casa. Mudou ele e mudou também sua cultura de origem. Vive como estranho permanentemente. Torna-se um itinerante e um caminheiro. Desloca-se como peregrino de um lugar para outro, testemunhando a provisoriedade e a contínua busca de uma morada definitiva. Insegurança e provisoriedade fundamentam-se na promessa de Deus que nunca vai abandonar o missionário.
Esta situação pode significar também que não existem mais muros e barreiras que dividem. Não há uma única cultura como não há uma cultura que melhor expresse as potencialidades do Evangelho. O estrangeiro, justamente por não ser parte integrante de um grupo, pode contribuir para que o outro se compreenda em sua real dimensão, como um espelho que reflete o rosto do outro e lhe permite contemplar-se na sua real dimensão.
Jesus é o típico estrangeiro. Mesmo sendo Deus, não reivindicou sua semelhança com o Pai como algo que devia ser retido, mas esvaziou-se a si mesmo, tornando-se servidor, assumindo a condição de escravo e fazendo-se em tudo como nós (Fil.2,6-7). A condição de escravo é muito parecida com a condição do estrangeiro, porque este confia na iniciativa e indulgência de quem hospeda, esperando que lhe sejam definidas a identidade e as funções. Jesus nunca teve uma casa própria, apesar de ter tido uma pequena definição de status: era filho de um carpinteiro, profissão que ele mesmo exercia. . Quando um escriba quis segui-lo, ele deixou claro o ritmo de seu estilo de vida: "As raposas têm suas tocas e os pássaros seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde pousar a cabeça”. (mat. 8.20)
5. O Evangelista Mateus “ O Missionario”
Avisão de Mateus sobre a missão é caracterizada pelo "grande envio" relatado no final de seu evangelho (Mt 28,16-20). "Os onze discípulos voltaram à Galiléia...Quando o viram prostraram-se; mas alguns tiveram dúvida. Jesus se aproximou deles e disse: 'Foi-me dada toda a autoridade no céu e na terra. Ide, pois, fazer discípulos entre todas as nações, batizai-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-lhes a observar tudo o que vos tenho ordenado. Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos".
O primeiro evangelho é essencialmente um texto missionário. Mateus escreve não tanto para contar a vida de Jesus, mas para apresentar um itinerário para uma comunidade em crise e para aprofundar seu chamado à missão. A comunidade de Mateus, uma comunidade proveniente do judaísmo situada num ambiente de pagãos, está passando por momentos de crises de identidade: o que vai acontecer no futuro? A comunidade pode continuar no judaísmo? Jesus é mais que um profeta? Alguns membros dão ênfase à lei e outros ao Espírito. Quem está certo? Mateus acha que todos têm uma certa verdade e falhas. Desta maneira, ele prepara o caminho para a reconciliação, o perdão, o amor mútuo na comunidade. E parece que todas essas tensões podem ser superadas, se todas as forças pudessem ser dirigidas para a missão no meio dos pagãos.
Mateus afirma claramente que a identidade da comunidade é "a comunidade em missão". Afirma isso quando escreve que todo o caminho de Jesus se endereçava aos judeus e aos pagãos e termina com o grande envio final.
Há três verbos no "grande envio" que destacam o caminho da missão. A expressão "fazer discípulos" é a mais central. O "fazer discípulos" é a expressão chave para o caminho da missão. A expressão "fazer discípulos" aparece somente quatro vezes no Novo Testamento: três vezes em Mateus (13,52; 27,57; 28,19) e uma vez nos Atos (14,21). Para Mateus, o termo "discípulo" não se refere somente aos doze apóstolos (como aparece em Marcos e Lucas). Discípulo é o protótipo da Igreja e inclui, também, todos os "discípulos". "Fazer discípulos" significa convidar outros a serem o que eles mesmos são: os que esperam o Reino de Deus (5,20) e são o sal e a luz do mundo (5,13).
Para Mateus, o que se aplica a Jesus diz-se também em relação aos discípulos. Em Mt 10,24, "O discípulo não está acima do mestre, nem o servo acima do seu senhor. Para o discípulo basta ser como o seu mestre, e para o servo, ser como o seu senhor", no sofrimento e na autoridade missionária. Há, porém, diferenças entre um e outros. Ele, Jesus, é o Senhor. Os discípulos não são perfeitos e experimentam a fraqueza e as contradições. Muitas vezes são classificados como pessoas de "pouca fé", cheios de dúvidas e receios. A fragilidade e a vulnerabilidade dos discípulos é experimentada em sua própria identidade: eles estão vivendo à beira da hostilidade dos judeus e pagãos. Assim aconteceu com Jesus. A missão nem sempre é vivida na certeza; muitas vezes se abastece da fraqueza. Há sempre uma tensão dialética entre adoração e dúvida, entre fé e medo.
Mateus é o único evangelista que põe na boca de Jesus o termo "Igreja" (Ekklesia) (Mt 16,18 e 18,17). Não se trata aqui da conotação de uma instituição ou denominação. Quando Mateus identifica a missão como "fazer discípulos", não está pensando em aumentar o número de adeptos de uma ou outra denominação. Ser discípulo não significa necessariamente ser parte de uma denominação local ou ajuntar membros para o próprio grupo. A perspectiva de Mateus é de um discipulado exigente. Existe tensão, em Mateus, entre o termo Igreja e o fato de fazer discípulos. De outro lado, os dois termos não estão separados. Em si, todos os membros da Igreja deveriam ser verdadeiros discípulos, mas nem sempre é assim. Há joio no meio do trigo, como há peixes maus na rede com bons peixes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário